Minas Gerais continua na liderança do ranking de trabalhadores resgatados de situações análogas ao trabalho escravo. A informação foi divulgada nesta quinta-feira (4), pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas Gerais. Em 2023, foram 643 pessoas salvas em situação análoga à escravidão, sendo a maioria dos casos no sul de Minas.
O número representa uma queda de 40% em relação números de 2022, quando 1.071 trabalhadores foram salvos. Mesmo assim, os dados são considerados alarmantes pelo órgão. O setor cafeeiro ainda é o que tem mais casos, seguido pelas plantações de cebola e alho.
Em 2023, foram realizadas 157 ações de fiscalização em Minas, um aumento em relação a 2022, que teve 123 ações. Apesar de ressaltar a intensificação dos trabalhos de fiscalização de um ano para outro, o superintendente do trabalho em Minas Gerais, Carlos Calazans, se entristece com os números.
"Em Minas Gerais foram quase dois trabalhadores resgatados por dia, e no Brasil são sete por dia. É um dado muito preocupante", lamenta. Ao traçar um perfil para as vítimas, o superintendente afirma que 90% são negras e vivem em condições de vulnerabilidade.
“É um traço da escravidão, do racismo. Isso tem cor e raça. Pessoas muito humildes, simples, uma boa parte analfabeta, com uma família desestruturada. E a miséria (também leva a isso)”, pontua.
Ainda conforme Carlos, parte dos casos de trabalho escravo envolvem, também, o tráfico humano, situação que se aplica a 221 das 643 pessoas vítimas resgatadas em 2023. “Vieram através de coerção, agressão, força física, ou através de promessas vazias. Vieram de ônibus, em condições precárias, para locais que elas não sabiam. Elas foram enganadas”, relata.
A partir do momento em que chegam ao local de trabalho, as vítimas encontram condições degradantes, de acordo com o superintendente. Além de não terem a carteira de trabalho assinada, nem receberem remuneração, aponta Carlos, as pessoas são submetidas a situações insalubres.
“Nós chegamos em uma fazenda, e as pessoas não tinham água para beber, estavam bebendo água em lagoa contaminada. Estavam dormindo no chão”, relembra.
Carlos Calazans aponta a impunidade como um dos grandes desafios para o combate ao trabalho escravo. Ele explica que a Justiça Federal é a responsável por julgar os casos denunciados pelo Ministério Público Federal, mas, segundo ele, os processos ficam parados.
"O indivíduo pratica o crime, a gente autua, e eles não são julgados. Não tem ninguém preso por trabalho escravo no Brasil", critica. Conforme Calazans, há até um movimento para que os casos passem a ser julgados pela Justiça do Trabalho, algo que Carlos vê com bons olhos. "Ela tem mais conhecimento e julgaria com mais técnica", resume.
Outro dificultador é o baixo efetivo de auditores fiscais do trabalho em Minas. Carlos Calazans revela que, hoje, há cerca de 200 profissionais no estado, o que deixa um único fiscal responsável por quatro cidades ao mesmo tempo, o que impede que a fiscalização chegue a todos os lugares.
“Já tem muitos anos que não temos concurso publico, e nós vamos diminuindo. O ápice dessa situação foi quando o Ministério do Trabalho chegou a ser extinto e virou uma secretaria. Isso foi o ápice do desmanche das políticas. Eu penso que com o dobro dos fiscais que temos, daria para fazer um bom trabalho”, diz Carlos, que tem esperança de que 100 novos auditores sejam incorporados ao efetivo de Minas Gerais até o primeiro semestre de 2024.
Na avaliação de Carlos Calazans, a luta contra o trabalho escravo precisa envolver um esforço coletivo, e não apenas do Ministério do Trabalho. Uma das medidas que ele cobra é punição a quem é flagrado na prática. “As nossas multas, eles podem recorrer, pagar e sair em liberdade. É uma coisa que o poder jurídico tem que responder para a nossa sociedade”, exige.
Junto a mais punições, Carlos convoca as forças de segurança e os poderes legislativo e executivo de cada cidade para atuar no combate ao trabalho escravo. O superintendente também dá dicas de como identificar e denunciar a prática. O trabalho escravo, ele explica, pode ser caracterizado por condições precárias de transporte e trabalho, falta de remuneração e de assinatura da carteira de trabalho.
“Vai ter uma colheita de café? Repare quem está chegando, como eles estão trabalhando. As pessoas têm que denunciar. Nós temos um site. Nós temos o Disque 100, que pode manter o anonimato. Denuncie nos nossos canais, que nós vamos chegar até eles”, pede o superintendente, que admite que há subnotificação dos casos.
Quem tem algum parente que foi para outra cidade ou estado para trabalhar também deve ficar atento. “Ficou três, quatro dias sem contato? Denuncie. Tem alguma coisa errada. Não espere, porque pode estar acontecendo algo muito grave com seu ente querido”, recomenda Carlos.
O mês de janeiro é um momento marcante para o combate ao trabalho escravo no Brasil. Em 2024, completam-se 20 anos da Chacina de Unaí. Em 28 de janeiro de 2004, os fiscais do Ministério do Trabalho Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares e Nelson José da Silva, além do motorista Aílton Pereira de Oliveira, foram emboscados em uma estrada de terra perto de Unaí, no Noroeste de Minas Gerais.
Eles estavam realizando visitas de rotina a propriedades rurais. O carro onde os fiscais e o motorista estavam foi abordado por homens armados, que mataram os quatro ocupantes do veículo com tiros à queima-roupa. A fiscalização estava no local por conta de denúncias de trabalho escravo.
Carlos Calazans conta que a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas Gerais está organizando um evento para relembrar a chacina.
“Vamos fazer no dia 28 de janeiro um grande pacto contra o trabalho escravo. Queremos atrair o governo do estado, as prefeituras, os empresários honestos, corretos, as entidades, os movimentos sindicais, todas as autoridades mineiras pelo trabalho seguro e decente. Esse pacto vai ser assinado aqui, na sede da superintendência. Acabar com o trabalho escravo é uma responsabilidade da sociedade”, defende.
Mas na avaliação de Carlos, a melhor homenagem às vítimas da chacina é a continuidade do combate ao trabalho escravo. “Eu era delegado do trabalho na época. A maior homenagem é continuar o nosso trabalho”, pontua.
Mín. 18° Máx. 31°