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Falta comida na mesa de 19 milhões de brasileiros

Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, a insegurança alimentar grave atinge 9% da população

25/01/2022 às 09h29
Por: Redação
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Na infância, Eliane*, 29, só comia carne quando ela e os quatro irmãos conseguiam pegar rato, lagartixa ou gambá nas armadilhas que faziam do lado de fora da barraca de pau a pique onde dormiam. Aquele cenário de fome já fazia parte do passado na vida deles, desde quando saíram de Serro, no Nordeste de Minas, para Belo Horizonte. Pelo menos ela pensava que não passaria mais por nada parecido, até o momento. Desempregada, com dois filhos, de 2 e 8 anos, o marido em busca de bicos, em tempos de inflação alta e crise econômica, ela de novo passa por privações e depende de ajudas para ter o básico nas panelas. 

A incerteza sobre ter ou não o que comer é, hoje, a realidade de Eliane e de outras 19 milhões de pessoas no Brasil, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan). A insegurança alimentar grave, ou seja, a fome, em lares onde inclusive há crianças, afeta 9% da população brasileira. 

Ao todo, segundo o estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, publicado em 2021, 59,4% da população sofreu com algum tipo de insegurança alimentar no primeiro ano da pandemia. O número é um salto em relação às pesquisas anteriores realizadas pelo IBGE: em 2004, o percentual era de 39,8%; em 2009, de 34,1%; em 2013, 25,8%. O país chegou a sair do Mapa da Fome da ONU em 2014, mas os índices pioraram nos anos seguintes, chegando a 41% na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em 2017-2018. 

Mulher forte, de fala firme, Eliane não lamenta a condição em que se encontra: “já passei por muita coisa nesta vida, então, o que tiver eu como”, diz. Mas, quando lembra que o estômago dela não é o único que dói, a confiança começa a se abalar: “Dói muito, é desesperador, ver um filho te pedindo algo e você não ter para dar. Tem uns três dias que minha filha está me pedindo fruta. O que me salvou foi que minha vizinha me deu umas bananas verdes que ela ganhou da família do interior. Eu fritei e dei para as crianças passarem o tempo”, conta. Depois que ela saiu da cidade natal, aos 14 anos, é a primeira vez que Eliane teme pela fome. “Aqui em casa, hoje, tem arroz, feijão e macarrão. Plantei chuchu e abóbora aqui em casa, que está nos salvando bem também”, conta. 

CONSEQUÊNCIAS

Essa situação vivida por Eliane e tantas outras pessoas é muito mais profunda e vai muito além de uma privação de alimento. “A dor da fome é uma dor que desestabiliza o ser humano. A pessoa com fome perde a dignidade”, afirma a presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Minas Gerais (Consea-MG), Renata Siviero. Segundo ela, a falta de acesso à comida impacta, também, o direito à saúde, principalmente pela tendência ao surgimento de doenças ligadas à má alimentação.

O direito à educação também é afetado, já que as funções cognitivas e a capacidade de aprendizado sofrem impactos, além da necessidade de gastar o tempo que seria de estudo tentando conseguir alimentos. Há reflexos também no direito ao trabalho, uma vez que a pessoa com fome não produz adequadamente; além do direito ao lazer, já que uma pessoa sem dinheiro para comida dificilmente terá recursos para gastar com outras atividades. 

É assim com Rafaela Miranda Passos, 27. Ela vive um ciclo de dificuldades tão grande que até a busca por soluções se torna um problema para ela. Explicando melhor: mãe solo de dois filhos, de 3 e 10 anos, ela não tem com quem deixar o menor nem para procurar emprego ou para resolver qualquer outra questão. “No ano passado, entrei na fila de espera da creche e não consegui vaga. Neste ano ainda não tive retorno”, conta. Ela divide o dia entre cuidar da casa e das crianças e correr atrás do que falta para eles como dá. A família recebe cestas básicas de doação e Bolsa Família, mas muito longe disso ser o suficiente para eles viverem bem. 

“Graças a Deus, fome não estamos passando porque sempre temos uma ajuda. Mas eu vou te contar que eu corro atrás, viu? Fico de olho em doações em igrejas, conhecidos, as patroas das minhas irmãs mandam roupas para as crianças, porque não sobra dinheiro para nada”, diz. 

POLÍTICAS PÚBLICAS

O Consea é o órgão responsável por avaliar e monitorar as políticas públicas relacionadas à segurança alimentar e nutricional no Brasil. Em 2018, porém, o órgão foi extinto pelo governo federal. “Isso acabou enfraquecendo a atuação dos Conseas estaduais e municipais, bem no ano em que o Brasil voltou ao mapa da fome”, avalia Renata Siviero. 

No cenário de pandemia, com mais de 13,5 milhões de desempregados e 5,1 milhões de desalentados no país no último balanço do IBGE, aumenta o número de pessoas em situação de vulnerabilidade - ao mesmo tempo em que os preços de alimentos disparam nos supermercados. “Se não há políticas públicas para garantir e fortalecer o direito das pessoas à alimentação, no contexto de uma pandemia, é impossível que as pessoas se alimentem adequadamente. E isso é papel do poder executivo”, diz Siviero.

Na avaliação dela, as ações são importantes, mas poderiam ter sido mais efetivas se as políticas na área de segurança alimentar fossem contínuas. “Poderíamos, ao invés de favorecer o agronegócio e as grandes redes de supermercados, incentivar a agricultura familiar a promover o acesso contínuo da população aos alimentos de qualidade”, ressalta. 

 No país, o auxílio emergencial criado em 2020 foi uma dessas políticas. Aprovado pelo Legislativo, o valor inicial de R$ 600 beneficiou cerca de 68 milhões de pessoas, que correspondem a um terço da população brasileira. O valor, segundo um levantamento da organização Food for Justice, foi usado por 63% das pessoas para comprar comida. Em 2021, o benefício foi reduzido à média de R$ 250 e pago a 40 milhões de pessoas. 

“Você tem um cenário que tinha políticas sociais e de transferência de renda bem articuladas, no âmbito nacional, estadual e municipal, mas, do nada, dispara a inflação e diminui a renda das famílias atendidas por essas políticas. Tivemos que pensar em ações imediatas, dar uma garantia às pessoas de que amanhã elas vão conseguir comer”, explica o diretor do Observatório de Desenvolvimento da Superintendência de Integração e Segurança Alimentar, órgão ligado à Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedese) do governo de Minas, Wesley Matheus Oliveira. 

O governo de Minas arcou com o pagamento de uma bolsa-merenda de R$ 50 a 365 mil famílias pobres ou extremamente pobres, enquanto as escolas estavam fechadas. Em 2021, o programa Renda Minas pagou três parcelas de R$ 39 por pessoa a 900 mil famílias em situação de extrema pobreza. 

Em Belo Horizonte, as ações emergenciais incluíram a entrega de cestas básicas às famílias de estudantes da rede municipal ou em situação de vulnerabilidade, além do pagamento do Auxílio Belo Horizonte, no valor total entre R$ 600 e R$ 1800. 

Os restaurantes populares – importantes instrumentos na política alimentar, sobretudo das pessoas em situação de rua - também tiveram o funcionamento ampliado, servindo cerca de 9 mil refeições por dia nas 4 unidades da cidade. O valor das refeições é de até R$ 3, no almoço, sendo que beneficiários do Bolsa Família pagam a metade do valor e os moradores de rua cadastrados no Cad Único possuem gratuidade no serviço. “Quando a gente tem uma operação da defesa civil por causa das chuvas, por exemplo, e as famílias não têm condições de preparar a alimentação em meio à tentativa de reorganizar a moradia, nós tentamos garantir a chegada dos marmitex dos restaurantes populares até esse locais”, acrescenta a Secretária Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania de BH, Maíra Colares. 

Outra ação destacada pela chefe da pasta, que foi ampliada durante a pandemia, é o banco de alimentos. “É uma política super importante porque a gente evita o desperdício. A gente tenta pegar aquilo que seria dispensado por supermercados e sacolões, porque estava fora do padrão de gôndola ou teve algum problema logístico, mas continua apto para o consumo humano. Então nós recolhemos esses alimentos e fazemos a separação, higienização e tratamento dos que podem ser consumidos”. O programa é destinado a entidades cadastradas junto ao executivo mas, com a pandemia, também passou a distribuir os alimentos a famílias em situação de vulnerabilidade.  

O Centro Mineiro de Reabilitação Auditiva (CEMEAR) é uma das entidades beneficiadas. A alimentação não é um foco do trabalho, mas a coordenadora-geral do projeto, Maria Izabel Silva e Mendes, explica que acabou se tornando uma parte importante do trabalho: “o lanche que nós oferecemos acabou se tornando um atrativo para as crianças e os pais, para que eles deem continuidade à reabilitação”, diz. 

Segundo ela, a entidade tem sofrido com a diminuição das doações, mas conseguiu, na pandemia, passar a distribuir cestas básicas pedidas por algumas famílias. “Pessoas que não precisavam de cesta básica passaram a nos pedir, a partir do ano passado. O aumento de custo de vida é o que está causando esta demanda para o CEMEAR. Não é o nosso objetivo principal, mas como não enxergamos o indivíduo só pela surdez, a gente acaba acolhendo dessa forma também”, completa.

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