Os níveis de reservatórios de usinas hidrelétricas em Minas Gerais já comprometem a produção de energia, e a Cemig não descarta a necessidade de um racionamento.
A falta de água nas represas também mudou radicalmente a vida de quem vive em cidades que dependem do recurso. Perde o fazendeiro, o trabalhador rural, o pescador, a cidade, perdem todos.
Mas será que tem alguma saída para além da tão esperada resposta que vem do céu? Ao que tudo indica, tem sim mais fatores impactando na falta de água em Minas do que a estiagem mais severa em mais de 90 anos. E é sobre isso que a repórter Alessandra Mendes, autora da série, fala nesta sexta-feira (3), na última reportagem na nossa série especial sobre a crise hídrica.
Não dá pra negar que a estiagem é um problema nacional, em especial nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do país. De acordo com o governo federal, o volume de chuva registrado desde outubro de 2020 é o menor dos últimos 91 anos. Mas uma coisa chama a atenção. Se você olhar hoje a situação dos reservatórios em Minas, vai ver que o cenário é crítico em alguns, mas não em outros. A represa de Três Marias, por exemplo, está hoje com mais de 50% da capacidade. O mesmo acontece em Queimado.
Se a explicação da crise dos reservatórios em Minas é a falta de chuva, como entender essa diferença? É porque não se trata apenas de falta de chuva. Há outro fator determinante para a situação atual das represas de usinas mineiras, em especial, aquelas nas bacias dos rios Grande e Paranaíba. Onde ficam as usinas que visitamos nos últimos dias: Furnas, Nova Ponte, Emborcação e Itumbiara.
A água de todas elas vai parar em São Paulo, na hidrovia Tietê-Paraná, que é responsável pelo escoamento de parte da produção agrícola de estados do Sudeste e Centro-Oeste. Com dois mil e 400 quilômetros de extensão, a hidrovia liga o porto de São Simão, em Goiás, ao Porto Intermodal de Pederneiras, no interior de São Paulo. Lá é feito o transbordo e os produtos seguem de trem até o porto de Santos.
A água dos reservatórios mineiros tem sido usada para manter o nível da hidrovia, que já opera em situação crítica, impactando o tráfego de barcaças. Desde o início do mês, 90% delas estão paradas porque a água está muito baixa e as embarcações não conseguem mais passar.
Para manter a hidrovia funcionando nos últimos meses, foi preciso esvaziar os reservatórios de Minas, que chegam agora, em alguns casos, nos níveis mais baixos da história. Uma medida que Djalma Carvalho, presidente da Alago, Associação dos Municípios do Lago de Furnas, classifica como desvio de água.
MAIS BAIXO EM 91 ANOS
“Realmente os níveis são os mais baixos dos últimos 91 anos. E eles estão baixos não só pela escassez de chuva, mas também acima de tudo por causa do desvio de água do Lago de Furnas para o abastecimento da hidrovia Paraná-Tietê, em São Paulo. É lógico que isso tudo afeta a economia, o abastecimento, a agricultura e outras áreas. Ou seja, se a partir de outubro e novembro, a Agência Nacional de Águas estabelecer uma vazão máxima a ser retirada do lago e não mais favorecer a navegabilidade da hidrovia Paraná-Tietê, muito certamente o lago passara acima da cota 7,62, mesmo no período de estiagem. Temos um problema de gestão que afeta dois milhões de pessoas ligadas ao lago”.
Dois milhões de pessoas afetadas, levando em conta apenas o Lago de Furnas. Mas isso também ocorre nas regiões das outras represas, Nova Ponte, no Alto Paranaíba, Emborcação e Itumbiara, no Triângulo Mineiro. Segundo Thadeu Alencar, diretor da Unelagos, União dos Empreendedores do Lago de Furnas e Peixoto, essa situação é resultado de um problema grave de gestão.
“Nós estamos na atual situação porque prioriza-se a hidrovia Paraná-Tietê, acima de qualquer outra coisa é priorizado o interesse privado. É preciso pensar no direito coletivo e garantir para Minas Gerais ao uso múltiplo das águas, e para o país uma segurança energética e uma conta de energia que não seja um arrobo na cara do brasileiro”.
RACIONAMENTO
Mesmo a conta já tão cara pode não nos livrar do pior. Thadeu avalia que, caso não haja uma mudança na forma de uso da água, o racionamento é um destino inevitável.
“Se não tiver uma mudança de política operacional urgente, isso será uma realidade. Isso aí já foi anunciado pelo ministro Tarcísio: para-se a hidrovia ou para a produção de energia. Não tem como produzir energia sem o reservatório de água”.
E, de fato, essa é uma possibilidade que já está no radar. A Cemig, que administra as usinas Nova Ponte e Emborcação, desconsidera o uso dessa medida no momento por causa de outras fontes de energia, como a eólica e solar. Mas, segundo Thadeu Carneiro da Silva, diretor de Geração e Transmissão da Cemig, com esse cenário, não dá para descartar a necessidade de racionamento mais adiante.
“Na atual situação podemos descartar o racionamento em virtudes destas outras fontes. Mas, se nós continuarmos utilizando água e energia de uma forma não controlada, não otimizada e não chover em um curto espaço de tempo, essa hipótese de racionamento não poderá ser descartada”.
Nos últimos dias, autoridades do governo federal também passaram a admitir a possibilidade de um racionamento, depois que a conta de luz voltou a subir. O fantasma de 2001 ronda novamente os brasileiros.
INVESTIMENTOS
Para Thadeu Carneiro da Silva, que trabalha no setor, hoje estamos mais preparados do que há 20 anos para enfrentar uma crise do tipo. Investimos em diversificação da matriz energética, para depender menos da água, mas, segundo ele, a política pode não ter sido a mais acertada.
“O sistema de hoje está muito mais preparado do que em 2001. Com outras fontes de energia para poder suprir a demanda. A diversificação ocorreu até rapidamente, mas as fontes de energia renováveis são fontes intermitentes, a geração solar só ocorre durante o dia. A eólica não tem capacidade de armazenamento. Então a política de investimento tem que se voltar para usinas de geração de base, as termoelétricas. Isso tudo para a base do sistema ficar mais sólida”.
A gente tentou falar com algum representante da Eletrobrás Furnas, que é responsável pelas usinas de Furnas e Itumbiara, para entender se eles compartilham dessas preocupações de moradores e gestores com relação à falta de água e energia, mas foi disponibilizada apenas uma nota para responder diversas questões levantadas ao longo dessas reportagens. Uma delas é sobre o escoamento de água para a hidrovia Tietê-Paraná, em São Paulo. A empresa se limitou a dizer que cumpre estritamente as determinações dos órgãos reguladores e que os níveis dos reservatórios e a energia despachada são programados pelo ONS.
A gente também procurou o ONS, Operador Nacional do Sistema Elétrico, que, por meio de nota, disse que vem enfrentando o período de escassez hídrica com bastante atenção, adotando ações excepcionais de maneira a otimizar os recursos existentes. Sobre a possibilidade de racionamento e apagão, o ONS alega que todos os esforços técnicos e operacionais estão sendo adotados para manter o fornecimento de energia elétrica para a população e para as atividades econômicas do país.
"BREJO DE MINAS"
A grande questão é essa: energia e água andam juntos. Não dá pra priorizar um e acabar com o outro. Como vimos ao longo dessa série especial, a falta de água já é uma realidade para muitos mineiros. E os prejuízos são incontáveis. Quem vive isso de perto, como o presidente da Alago, Djalma Carvalho, clama por uma solução: Minas precisa ter de volta seu mar.
“É absolutamente necessário que normas sejam estabelecidas que possam devolver ao Estado o Lago de Furnas, conhecido no passado como mar de Minas, que eu volto a chamar de o brejo de Minas”, concluiu.
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