Trinta e cinco organizações da sociedade civil lançaram uma campanha para tentar impedir que o Ministério da Justiça compre um programa de espionagem digital usado por governos para monitorar e invadir o celular de opositores. Para especialistas ouvidos pela Abraji, tanto o software Pegasus quanto o Harpia Tecnologia podem violar o direito à privacidade e impactar o exercício do jornalismo no Brasil.
Mais de 1.300 e-mails foram disparados, via site da campanha, para o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Justiça Federal, pedindo que seja barrada a contratação de qualquer sistema de espionagem que viole direitos e liberdades democráticas.
O vice-presidente da Abraji, Guilherme Amado, pontua que os profissionais de comunicação têm o direito de manter o sigilo das fontes quando sabem que a informação é de extrema importância para as investigações jornalísticas. “Se o governo manifesta interesse em comprar essa tecnologia, sem definir os critérios de uso e como será feito esse controle, é bem preocupante para os jornalistas”, afirma.
Reportagens publicadas por UOL e na Revista Época revelaram que órgãos do governo podem estar envolvidos em ações de espionagem. A do UOL mostra a ação sigilosa do governo para identificar professores e policiais que pertenciam ao chamado "movimento antifascismo". Já o da Revista Época aponta que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu relatórios para subsidiar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na anulação do caso Queiroz.
Para Amado, o interesse na compra dessas ferramentas gera insegurança: “A aquisição de um programa de espionagem ilegal, especialmente nas mãos desse governo, é alarmante, pois há indícios concretos de que a Abin possa estar sendo desvirtuada.”
Se o governo brasileiro seguir com a aquisição de soluções tecnológicas para espionagem, irá contrariar as regras éticas e democráticas, segundo o professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rogério Christofoletti.
“Nenhum governo está autorizado por seu povo ou pela Constituição a espionar pessoas ou organizações. Isso desequilibra a correlação de forças e dá ao governo um poder incomparável, impossível de ser detido. A privacidade, a intimidade e os sigilos telefônicos e telemáticos são garantidos por lei no Brasil, e só podem ser violados em casos muito específicos, sob ordem judicial”, explica.
Ele também ressalta a importância de o governo agir de forma ética. “O governo precisa ser transparente em suas ações, e a imprensa livre e crítica é uma necessidade da sociedade. Espionar pessoas ou organizações é uma atitude de governos que abusam de seu poder e que operam fora da lei”, finaliza.
Além da campanha on-line contra a compra da ferramenta, as organizações Conectas, Igarapé, Rede Liberdade, Sou da Paz e Transparência Internacional, que fazem parte do Pacto pela Democracia, apresentaram denúncia ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre irregularidades e ilicitudes na contratação do programa de espionagem.
Histórico do caso
Em mai.2021, o Ministério da Justiça cogitou adquirir no pregão eletrônico, entre outras ferramentas de espionagem, o programa Pegasus, desenvolvido pela empresa israelense NSO Group.
Descoberto em 2016, o Pegasus foi criado para coibir a ação de criminosos e terroristas. Porém, alguns governos utilizaram a tecnologia para invadir celulares e monitorar conversas de jornalistas e opositores políticos, como aconteceu no México, em 2017, de acordo com reportagem do New York Times.
Essa intenção de compra do governo, que se deu por meio da licitação nº 03/21, abriu uma crise política envolvendo o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o alto comando militar. O fato de o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a Abin, que poderiam ser beneficiados com a aquisição do equipamento, terem ficado de fora do edital, gerou especulações sobre a criação de uma Abin paralela usando as estruturas do Ministério da Justiça e da Polícia Federal.
Para se afastar da polêmica, a M.C.F da Silva, que comercializa o Pegasus no Brasil, se retirou do processo licitatório, vencido pela Harpia Tecnologia Eireli.
Como o Pegasus funciona?
O programa se assemelha a um vírus, que permite o rastreamento em segredo de todas as atividades registradas no celular infectado. É possível identificar mensagens digitadas, e não apenas as enviadas, além de acessar contas bancárias, redes sociais e email. O Pegasus também permite que o celular infectado funcione como um espião remoto, pois consegue ativar o microfone para ouvir conversas, tirar fotos, acessar a localização e monitorar os sites navegados.
Esse foi o programa utilizado pelo governo saudita para espionar o jornalista Jamal Khashoggi, morto em 2018, no consulado da Arábia Saudita na Turquia.
De acordo com Lucas Lago, pesquisador pelo Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da USP (CEST-USP) e desenvolvedor do projeto7c0, o Pegasus é um malware rat, também conhecido como cavalo de Troia, que pode ser acionado de dois modos: por meio de clique no link ou na versão “zero cliques”, que funcionaria como uma notificação no celular.
“Como o NSO Group [fabricante do Pegasus] está sempre atualizando o vírus, torna-se um pouco difícil o rastreamento da instalação. Uma alternativa para minimizar o risco seria a instalação de antivírus e aplicativos que oferecem segurança acima do comum, como um aplicativo de teclado criptografado, que protege as informações digitadas no celular”, explica.
Invasão de privacidade e ameaça às mulheres
Para o advogado e diretor do Internet Lab, Francisco Brito Cruz, o Brasil pode adquirir um programa de espionagem, desde que não interfira no direito à privacidade. “O papel do Estado é informar as pessoas sempre que houver vulnerabilidade, e não provocá-la. A aquisição de alguns programas pode contribuir com a inteligência e a segurança, mas não há hipótese que sustenta a justificativa de espionar as pessoas”, explica, acrescentando que, caso o governo decida adquirir esse ou outro programa de espionagem, o assunto precisa ser debatido com a sociedade para garantir que os direitos fundamentais sejam respeitados.
Se o programa desperta críticas por abrir brechas para espionar ilegalmente jornalistas, há uma preocupação ainda maior em relação às mulheres jornalistas, mais vulneráveis a ataques no ambiente digital.
Estudos feitos pela diretora de segurança cibernética da Electronic Frontier Foundation, Eva Galperin, mostram que as mulheres são os primeiros alvos dos ataques cibernéticos.
“Existe uma lista de softwares que permitem o stalkware ou spouseware, termo criado por Eva Galperin, que nada mais é do que a perseguição virtual nas redes sociais de maridos contra ex-esposas, o que mostra que é bem comum esse tipo de invasão de privacidade contra as mulheres”, explica Yasodara Córdova, pesquisadora nas áreas de Cidadania Digital, Desinformação e Democracia Digital.
Córdova explica que a perseguição virtual, além de sexista, passa pela desigualdade social. “Mulheres que possuem celulares mais antigos, sem tantos recursos que impedem atualizar a segurança dos aparelhos, são mais suscetíveis a esse tipo de ataque”.
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