“Espetáculo da vida”, como descreve João Cabral de Melo Neto no célebre poema “Morte e Vida Severina”, o parto é, simbolicamente, a mais forte expressão de reafirmação da vida sobre a morte. Não por acaso, culturalmente, o nascimento de uma criança carrega, em si, um sentido de realização pessoal incomparável e costuma ser motivo de celebração. Para as mulheres, em especial, a maternidade – mesmo que implique grandes desafios – costuma ser encarada como um sonho ou até como um propósito. Fato é que, invariavelmente, esse tornar-se mãe – longe daquele ideal romântico de uma maternagem pura, mais próxima de um conto de fadas do que da vida real – é uma experiência radical que comunica sentimentos dúbios. Há alegria, mas também angústia. Há expectativa, mas também medo. Há realização, mas também frustração. Sem dúvida, lidar com essas emoções, que surgem em um momento tão delicado e com um quê de contraditórias, não é tarefa fácil. Nem mesmo para as pessoas mais preparadas.
Ao olhar para trás e examinar os primeiros meses após o nascimento de sua primeira filha, Laís, hoje com 6 anos, a ginecologista-obstetra Mônica Nardy identifica em sua própria experiência traços do que, possivelmente, foi uma depressão perinatal – popularmente chamada de “depressão pós-parto”. “Eu tinha uma sensação de ansiedade absurda e não conseguia ter tempo para nada, menos ainda tempo para mim. A primeira vez que fui me cuidar, que fui fazer algo por mim mesma, ela estava com 4 meses”, lembra. A médica cita que o problema é muito incidente.
Estima-se que 25% das mulheres sofram com o transtorno, índice que pode ser maior, dado que há histórica subnotificação para o tema. “Isso porque mulheres não percebem que estão deprimidas. É um momento em que estamos em transição, em que podemos estar confusas, vivendo ambivalências... Nesse momento, é difícil que a gente consiga olhar com clareza para o que estamos sentindo”, assinala Mônica. “Além disso, geralmente, o retorno puerperal é baseado apenas em exames físicos, sem que haja cuidado de abordar e orientar as pacientes sobre esse turbilhão de emoções, sem um olhar mais cuidadoso para a saúde mental”, complementa, pontuando que a depressão perinatal é duas vezes mais comum que o diabetes gestacional.
A dificuldade de diagnóstico é ampliada perante a ocorrência da síndrome baby blues ou disforia puerperal, um transtorno do humor muito comum e que costuma ocorrer nas primeiras semanas após o nascimento de uma criança. “Trata-se de um fenômeno que é esperado, que atinge oito em dez mães e que é um acontecimento fisiológico”, explica a psicóloga familiar Daniela Bittar. “A manifestação pode ser leve, moderada ou grave, mas, em geral, não dura mais de três semanas”, detalha ela, acrescentando que o distúrbio está fortemente associado à queda hormonal brusca depois do parto.
Sintomas
Os sinais da depressão perinatal e do baby blues são parecidos. “Nos dois casos, o humor instável é uma característica marcante, assim como uma percepção de dificuldade de conexão contigo mesma e extremo cansaço. O choro costuma vir mais fácil. A mulher também tende a ficar mais irritada. Há grande sensação de impotência, angústia, tristeza e de desânimo”, descreve Daniela Bittar.
Mônica Nardy acrescenta que a principal diferença, em termos de sintomatologia, é a intensidade com que essas emoções incidem sobre a mãe. “Quando essas sensações persistem por mais de três semanas e/ou quando há um agravamento e a mulher passa a se sentir incapaz de prestar assistência a si mesma e/ou à criança, temos o diagnóstico de um quadro depressivo”, explica.
As duas especialistas advertem que, embora esses transtornos de humor tenham características parecidas, suas implicações são muito distintas. “Tão de repente quanto chega, o baby blues desaparece – sem sequer ser necessária alguma intervenção”, expõe Daniela. O que não significa que o problema possa ser diminuído. “O que a mulher vai sentir nessa fase é real e deve ser respeitado. Não dá para dizer que é frescura, que é algo menor”, pondera a psicóloga.
Já a depressão, se não tratada, tende a se agravar e pode trazer sérios comprometimentos para toda a família. “Se negligenciado, o problema pode se tornar orgânico e pode causar a ruptura no vínculo materno-filial, prejudicando o desenvolvimento do bebê, pois uma mãe que está desconectada de si não vai conseguir se conectar adequadamente ao filho e, como efeito disso, não vai estimular que ele se desenvolva”, informa Daniela. As relações afetivas, sociais e profissionais também ficam ameaçadas. “Muitos casamentos acabam por conta desse distúrbio, que costuma deixar a mulher muito instável”, cita. Além disso, o adoecimento pode levar ao desenvolvimento de outros quadros psiquiátricos.
Prevenção
A fim de cuidar preventivamente das mulheres, buscando evitar o agravamento de um problema já tão comum, há um movimento médico que busca lançar um olhar mais cuidadoso para a depressão perinatal. “Uma das ações é justamente renomear o problema. Afinal, nós entendemos que pode ser que a depressão tenha começado na gestação, e não apenas após o parto. Portanto, não faria sentido classificar o quadro como uma depressão que necessariamente se inicia pós-parto”, indica Daniela Bittar.
Por trás dessa mudança de lógica, abre-se espaço para a identificação prévia do transtorno. “Hoje, existem testes, que poderiam ser aplicados em consultórios ou por meio do atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que são eficazes e ajudam a identificar mulheres que tendem a desenvolver a depressão perinatal. Com isso, poderíamos iniciar um tratamento mais rapidamente e conseguiríamos evitar muitos conflitos”, avalia, reforçando que, para isso, é fundamental que toda a família esteja envolvida no acontecimento do nascimento de uma criança.
Proteção. “Uma importante barreira ao desenvolvimento desse distúrbio é o fortalecimento de uma rede de apoio, trazendo também para o pai e para outras pessoas próximas o papel de cuidar da criança e de cuidar dessa mulher, que está tão envolvida com a maternidade e lidando com sentimentos tão ambivalentes que pode não perceber sinais depressivos em si”, aconselha a Daniela.
Risco
Mônica Nardy informa que, embora possa acontecer com qualquer pessoa, existem fatores de risco associados à depressão perinatal. “Se a mãe tem histórico de quadro depressivo ou ansioso pregresso ou se há casos assim na família, por exemplo, as chances de ocorrência do transtorno são maiores. Também contribuem para o problema eventuais traumas ou vivências traumáticas durante a gravidez e/ou o parto”, explica.
A médica adverte que, durante a gestação, a suspensão de medicamentos psiquiátricos sem o devido acompanhamento profissional é outro elemento que contribui para a manifestação da depressão.
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