Desde o início da pandemia, a rotina da técnica de enfermagem Ana Lúcia Ferreira, 33, virou de cabeça para baixo. Como se não bastasse estar na linha de frente da batalha contra a Covid-19, e o marido, vendedor autônomo, ter reduzido em 80% o rendimento mensal, passou a lidar com a possibilidade de ter que tirar os filhos da escola particular pela redução na renda. Do apartamento no bairro Frei Leopoldo, na região Norte de Belo Horizonte, ela acompanha os filhos, de 2 e 4 anos, regredirem dia após dia sem os estímulos escolares.
"Fiquei impressionada com a forma como os meninos retrocederam e como é fundamental o convívio com educadoras e outras crianças." (Ana Lúcia Ferreira, técnica de enfermagem)
Do outro lado da cidade, a cerca de 20 km de distância de lá, sua xará, Ana Luiza Cardoso de Macedo, 37, já “entregou para Deus” o aprendizado dos filhos, de 11 e 15 anos. Desempregada e moradora da ocupação Carolina de Jesus, na região Centro-Sul da capital, ela não tem internet para que as crianças acompanhem aulas nem condições financeiras para imprimir as atividades enviadas pela escola.
Além do nome, Ana Lúcia e Ana Luiza compartilham a impossibilidade de acompanhar as aulas remotas dos filhos, e as duas temem pelo desenvolvimento das crianças. “O mais velho voltou a chupar bico”, conta Ana Lúcia. Já Ana Luiza está mais preocupada com a comida. “Estou sem emprego. O que está me salvando é a cesta básica da prefeitura”, diz a mãe.
As histórias são de duas Anas, mas contam a realidade de uma população inteira. Seja pela desigualdade que separa classes ou pela defasagem de aprendizado que chega para todos, o Brasil está à beira de um abismo educacional. “Com a pandemia, tudo isso está piorando, pois os estudantes mais pobres tiveram um acesso precário. Todos foram prejudicados, mas os mais pobres, muito mais. As diferenças que já eram grandes vão ficar abissais”, afirma o pós-doutor em estatística pela Universidade de Michigan e professor emérito da UFMG José Francisco Soares.
“Estou sem emprego. O que está me salvando é a cesta básica da prefeitura” (Ana Luiza Cardoso de Macedo, desempregada e moradora da ocupação Carolina de Jesus)
Dados do Unicef, compilados a partir do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dão a dimensão de um reflexo preocupante da pandemia: o abandono escolar. Em 2019, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, mais de 700 mil crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não frequentavam a escola, o equivalente a 2% do total da amostra. Em 2020, outra pesquisa (Pnad Covid) – que perguntou se o aluno tinha frequentado as aulas nos últimos 15 dias – revelou que esse percentual havia praticamente dobrado: 3,8%, ou 1,38 milhão de alunos. Em Minas Gerais, a taxa subiu de 2% para 4%.
Segundo o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), que elaborou o estudo para o Unicef, soma-se a essa conta o número de estudantes frequentes, mas que não receberam nenhuma atividade no ano passado, e aqueles que receberam as tarefas, mas não conseguiram fazê-las em 2020 – taxa que ultrapassa 6,5 milhões.
Mesmo quando a pandemia passar, os desafios desse abismo da educação ainda vão perdurar. Relatório recente do Banco Mundial prevê que a necessidade de manter as escolas fechadas por muito tempo pode fazer com que até 70% das crianças não consigam ler e compreender um texto simples ao concluir o ensino fundamental na América Latina e no Caribe. Antes da Covid, eram 50%.
Desigualdade na educação brasileira se acentou com a pandemia de coronavírus
Acesso à educação é pior entre os negros e os mais pobres
Crianças negras e pobres são as com menos acesso à educação na pandemia, segundo a pesquisa da Fundação Abrinq “Cenário da Infância e da Adolescência 2021”. Enquanto 7,2% das crianças brancas de 7 a 14 anos não tiveram acesso às tarefas no ano passado, 15,5% da população negra entrevistada enfrentou o mesmo problema. A fundação sobrepôs, ainda, a Participação no Bolsa Família (PBF) e, entre negros participantes do programa de transferência de renda, o percentual sobe para 20,5%.
Na faixa etária de 15 a 17 anos, 12,3% dos estudantes brancos e 21,5% dos alunos negros não receberam atividades escolares. Quando a família negra também tinha PBF, o indicador saltava para 26% do total sem acesso às tarefas da escola.
Para o diretor de pesquisa e avaliação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Romualdo Portela, é um desastre educacional. “As famílias mais ricas têm condições materiais e culturais para resolver os problemas educativos. A natureza do trabalho da parcela mais pobre da população era mais presencial, e o desemprego é realidade. Neste momento de empobrecimento brusco e latas vazias, a escola é artigo de luxo. A luta é por comida”, analisa.
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