Em seu novo livro, “Vamos sonhar juntos”, que será lançado mundialmente nesta terça-feira (1º) e a que a reportagem teve acesso, o Papa propõe saídas para a crise da Covid-19, ao mesmo tempo em que elogia o movimento pelos direitos das mulheres “#MeToo” e os protestos do “Black Lives Matter”, também posicionando-se firmemente contra governos populistas e políticos que desacreditaram da gravidade da pandemia. Homem, branco, com quase 84 anos e representante de uma instituição milenar, em princípio o perfil do Papa Francisco é distante de alas progressistas contemporâneas, contudo algumas de suas declarações o posicionam como símbolo de progresso, mesmo que, na prática, ele ainda não tenha revolucionado a Igreja.
O novo volume, escrito com o biógrafo britânico Austen Ivereigh, propõe alternativas para um capitalismo responsável e resume a filosofia de estímulo ao diálogo que Francisco defende em seus sete anos de papado, por vezes confundida com uma mudança nos dogmas da Igreja. Atraindo críticas de setores mais tradicionais, ele já acenou a cristãos divorciados e LGBT e condenou os casos de abuso sexual cometidos por padres, inclusive baixando uma nova regra que ordena que os episódios sejam denunciados à Justiça civil.
Na visão de estudiosos, ele não é um revolucionário que esteja virando as tradições católicas de ponta cabeça, mas um líder que escolheu o caminho da empatia para reforçar os valores cristãos. Para eles, em vez de alterar tradições, o Papa quer mudar comportamentos — para que pessoas LGBT sejam mais aceitas na comunidade, por exemplo, ainda que nunca se casem no altar. Como o próprio Francisco escreve em seu livro, citando o compositor austríaco Gustav Mahler, “a tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo”.
“Em grande parte, o pensamento progressista ou, digamos, politicamente correto, é uma aplicação de valores clássicos do cristianismo, basicamente a ideia de fraternidade e de amor ao próximo. Aí, você tem o grande diferencial de Francisco. Em um momento em que a sociedade ocidental passa por uma crise de valores e rompe com parte deles, o Papa se torna um retorno às fontes humanistas do pensamento do Ocidente”, elabora o sociólogo Francisco Borba Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. Em seu novo livro, o Papa exalta o lema da Revolução Francesa, mas pede mais atenção à fraternidade, além da liberdade e da igualdade.
No caminho, culpabiliza políticos que negaram a gravidade da Covid-19 pela escalada da pandemia e “hipotecaram o próprio povo”. “Alguns veículos (de imprensa) usaram esta crise para convencer as pessoas de que os culpados são os estrangeiros, que o coronavírus não é mais do que uma leve gripe, que muito em breve vai estar tudo como antes, e que certas restrições são uma exigência injusta de um Estado invasivo. Há políticos que vendem essas narrativas em benefício próprio”, escreve.
Alinhado à sua ideia de uma igreja “para os pobres”, defendida desde o início de seu papado, ele ataca o neoliberalismo e, mais de uma vez, condena um sistema que permite que 1% da população concentre mais da metade da riqueza global. Ao visualizar soluções para o mundo pós-pandemia, afirma que o trabalho voluntário será essencial e propõe a renda básica universal para garantir o voluntariado. Simultaneamente, cogita um aparato já utilizado por governos liberais: a redução de jornada de trabalho com diminuição proporcional de salário.
Papa alinha-se a ‘Black Lives Matter’ e mantém posição conservadora sobre aborto
Em “Vamos sonhar juntos”, o Papa Francisco apoia os protestos contra injustiça racial, encabeçados pelo “Black Lives Matter”, que reavivaram discussões sobre as estruturas que sustentam o racismo. Por outro lado, pondera que a derrubada de estátuas de homens escravocratas nos EUA e em outros países, capitaneada por manifestantes, correria o risco de “podar a história (e) nos fazer perder a memória”.
Fiel à sua habitual proximidade a movimentos sociais, o Papa também faz coro à iniciativa por direitos das mulheres “#MeToo” e louva as profissionais que atuam na Igreja. Ainda assim, na perspectiva dele, a independência das mulheres não se estende à livre escolha sobre a gravidez. No novo livro, Francisco equipara o aborto à eutanásia, à pena de morte e à destruição do meio ambiente, embora tenha permitido absolvição a mulheres que se arrependam do ato. “O aborto é uma injustiça grave. Nunca pode ser uma expressão legítima de autonomia e poder”, diz.
Ainda que amarrado a aparentes contradições — termo que ele não gosta de utilizar —, o Papa Francisco consolida-se como um símbolo alternativo ao retorno dos populismos pelo mundo, que ele mesmo aponta. O historiador e professor de ciências da religião na PUC Minas Rodrigo Coppe Caldeira lembra que o poder do Papa é limitado no xadrez da política internacional. “Não me parece que as falas dele tenham um impacto direto. O impacto é no imaginário, como símbolo religioso que diz coisas a que devemos estar atentos e que pode causar algum embaraço político”, pontua.
Nesse sentido, o sociólogo Francisco Borba Neto, da PUC-SP, destaca que símbolos também têm poder. “A política precisa de personagens simbólicos que aglutinem as forças sociais e os discursos racionais. O simbolismo do Papa Francisco é muito importante, por sua capacidade de apontar um mundo alternativo em um momento em que as chances de um mundo assim eram quase nulas. Não sabemos até que ponto Francisco vai ser um protagonista, se ele vai, de fato, conseguir propor o diálogo e até que ponto vamos ter uma alternativa baseada nisso para os problemas do mundo de hoje”, aprofunda.
Um dos maiores desses problemas, elenca o Papa, são as mudanças climáticas globais, sobre as quais ele diz ter despertado em um encontro com bispos latino-americanos no Brasil, em 2007. Cada vez mais vocal sobre o tema, Francisco não reinventou a roda: o meio ambiente é uma preocupação da Igreja Católica há pelo menos meio século, segundo o professor Coppe Caldeira. O atual pontífice inova ao colocá-lo na linha de frente, a começar pelo nome que escolheu, em homenagem ao santo associado à proteção aos animais. Se o combate às mudanças climáticas é uma das maiores questões do século 21, o Papa Francisco declara-se pronto para guiar soluções. “É uma consciência, não uma ideologia”, conclui, no livro.
“Vamos sonhar juntos”: confira trechos do novo livro do Papa Francisco
Protestos “anti máscara”
“Alguns protestos durante a crise da Covid-19 suscitaram o espírito indignado do vitimismo, mas dessa vez entre pessoas que são vítimas apenas na própria imaginação. Como as que reclamam que a obrigação de usar máscara é uma imposição injustificada do Estado, mas se esquecem, ou não se importam, de todos os que, por exemplo, não contam com previdência social ou que perderam o emprego”.
Política na pandemia
“O que é mais importante: cuidar das pessoas ou fazer com que a economia não pare? Cuidamos das pessoas ou as sacrificamos no altar da bolsas de valores? Interrompemos as engrenagens que geram riqueza, conscientes de que as pessoas sofrerão, embora assim salvemos vidas? Em alguns casos, governos não foram capazes de que compreender a magnitude desta doença ou não contaram com os recursos necessários. Esses governos hipotecaram o próprio povo. As decisões que tomaram puseram à prova suas prioridades e deixaram expostos seus valores”.
Abuso sexual
“A cultura do abuso, seja sexual, seja de poder, seja psicológico, começou a ser desmantelada primeiramente pelas próprias vítimas e suas famílias que, para além da sua dor, foram capazes de perseverar e buscar justiça, ajudando a alertar e a curar a sociedade dessa perversidade. (...) Não me cansarei de dizer, com pesar e vergonha, que esses abusos também foram cometidos por alguns membros da Igreja”.
Aborto
“Ainda que muitos possam se aborrecer ao ouvirem um Papa voltar a este tema, não posso ficar calado quando entre 30 e 40 milhões de vidas por nascer são descartadas, todos os anos, através do aborto. Dói constatar que, em muitas regiões consideradas por si mesmas desenvolvidas, esta prática seja promovida, frequentemente, porque essas crianças geradas são deficientes ou não estavam planejadas. A vida humana nunca é um fardo. Exige que criemos espaço para ela e não que a descartemos. (…) O aborto é uma injustiça grave. Nunca pode ser uma expressão legítima de autonomia e poder”.
Meio ambiente
“Há movimentos verdes que transformam a vivência ecológica em algo ideológico, mas ela é apenas isto: consciência, não ideologia. É ser consciente do que está em jogo no destino da humanidade”.
Livre mercado
“Não critico o mercado per se. Denuncio o cenário, muitíssimo frequente, em que a ética e a economia se dissociam. E critico a ideia, notoriamente fictícia, de que permitir o aumento a riqueza de forma descontrolada criará prosperidade para todos. (...) O livre mercado é tudo menos livre para inúmeros pessoas, sobretudo para os pobres, que, na prática, acabam tendo poucas — ou nenhuma — opções”.
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