A dor do outro
A psicanalista e mestre em educação destaca também que “não podemos esquecer que a criança que cresce vendo os pais infringirem as leis, atuar no espaço público desrespeitando as regras da boa convivência, pais que se julgam no direito de ser violentos com os subalternos, brutos com os empregados, deixando transparecer traços racistas, machistas, eles estão produzindo filhos que vão gostar de ser também carrascos com os colegas – na escola serão os primeiros a participar de brincadeiras como ‘roletas humanas’, quando giram o colega até ele cair e bater com a cabeça no chão.”
"O que nós adultos temos de interessante para falarmos à nova geração? Parece que não temos nada. Temos de descobrir em que momento todo esse ruído começou"
Jane Patricia Haddad, mestre em educação, pedagoga e psicanalista
Ela explica que “a escola reflete a família, portanto, é de se perguntar como esses jovens foram educados, com quais referências? Com o discurso da pós-verdade que relativiza tudo, desvaloriza a educação de Paulo Freire, que era inclusiva, centrada na austeridade, ou na educação da competição a qualquer custo, doe a quem doer, sendo que o importante é o sucesso, vencer o inimigo ao lado? Qual escola queremos para nossos filhos: a da roleta humana ou a que ensina que a vida não deve ser uma máquina desumana de roer os concorrentes, o colega ao lado”?
Para Inez Lemos, cabe somente aos pais e educadores as propostas que poderão ajudar nessa questão. “E à sociedade, o melhor era aderir aos programas educacionais menos neoliberais e mais humanistas, menos obscurantistas e excludentes. A educação de jovens não pode se aliar à política do vale-tudo, da covardia moral e da falta de respeito ao outro, senão será quando a barbárie se elevará como trovão da ordem.”
Ritos de passagem
Jane Patricia Haddad, mestre em educação, pedagoga e psicanalista, ressalta o fato de todo início de ano letivo um fenômeno da natureza dos já citados aparecer novamente: “O espanto é que para os adolescentes, e para muitos pais, é apenas uma brincadeira”! Para ela, a explicação pode vir do “pulso solto, da busca pelo perigo, como se a vida não tivesse sentido. A violência está banalizada. Na internet há vídeos ensinando a criar bomba caseira e como dar facadas certeiras”.
Jane Patricia Haddad, mestre em educação, pedagoga e psicanalista, ressalta o fato de a violência estar banalizada na sociedade atual (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Para ela, não há como apontar uma única origem para esse comportamento. As redes sociais, a sociedade individualista e solitária, a espetacularização da vida, o medo dos pais em cobrar dos filhos ou mesmo de conversar... a parcela está em cada situação: “A tecnologia do tempo real, o fazer e mostrar na mesma hora... Enfim, é preciso entender que talvez todos esses jogos e desafios sejam um pedido de ajuda aos mais velhos. É urgente rever o que está sendo prioridade. É pai chamando filho de molenga, é professor colocando apelido em aluno.”
Jane Haddad alerta que uma questão se faz urgente: “O que nós adultos temos de interessante para falar à nova geração? Parece que não temos nada. Temos de descobrir em que momento todo esse ruído começou.” A grande preocupação é que já não há comunicação ou, se ela ocorre, está cheia de névoa, obstáculos e máscaras: “Aliás, a máscara é uma simbologia correta para tudo isso”.
A pedagoga e psicanalista acredita que há um esvaziamento das relações, uma banalidade da vida que é assustadora: “A cada dia, um fenômeno novo. Hoje é o bullying, depois a baleia azul, agora a rasteira, e amanhã todos já esqueceram. Até o próximo. Por isso, tem chegado cada vez mais no consultório as consequências de tudo isso, a doença física mesmo. Não é necessário voltar no tempo, mas é urgente trabalhar a prevenção”.
Emanuela Medeiros, de 16 anos, morreu de traumatismo craniano após levar rasteira em escola no Rio Grande do Norte (foto: Arquivo Pessoal/Reprodução da Internet)
Jane Haddad não gosta da ideia de apontar culpados, mas sim de levantar questões: “Quando começamos a negociar algumas coisas? Porque esta matéria, certamente, quem vai ler são os adultos. Não é apontar o dedo para ninguém. Esses fenômenos só mudam de roupa. Vivemos numa sociedade do espetáculo, do coletivo, uma sociedade de mudança de paradigma, e é emergencial descobrirmos e perguntar o que acontece, mas sem juízo de valor ou culpados. Família, escola e saúde, todos juntos.”
A psicóloga e psicopedagoga Renata Feldman destaca os aspectos desse tipo de ação entre os jovens. “Parece que há uma banalização de uma brincadeira que vai gerar efeitos muitas vezes catastróficos e fatais. Não é simplesmente fazer a brincadeira no recreio da escola, com a turma envolvida. É fazer, filmar e passar adiante. Estão viralizando algo muito sério, mas que a princípio tem um tom de leveza, de descontração, de brincadeira.”
"É como se todos tivesse um megafone para expressar suas opiniões. Há uma exposição muito grande de vídeos, de fotos, de momentos da vida privada que acabam indo para vida pública, de uma maneira agressiva"
Renata Feldman, psicóloga e psicopedagoga
Ela ressalta a influência da espetacularização da vida privada nesses atos de violência compartilhada. “É como se todos tivessem um megafone para expressar suas opiniões. Há uma exposição muito grande de vídeos, de fotos, de momentos da vida privada que acabam indo para vida pública, de uma maneira agressiva ou impactante dependendo que como as pessoas a usam.”
A psicanalista e psicopedagoga Renata Feldman alerta para o perigo da banalização de casos como esse nas redes sociais (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)
Para Renata, as pessoas buscam um protagonismo individual nas redes sociais devido à timidez ou à importância que se dá à opinião de outros. “As pessoas querem os aplausos, querem a aprovação das pessoas.” A psicóloga e psicopedagoga propõe um exercício de autocrítica: “A qual espetáculo estamos assistindo quando nos deparamos com vídeos como esses, como desafios da baleia azul, da rasteira? É o espetáculo do drama, da tragédia. Até que ponto esses adolescentes estão misturando realidade com a ficção?”.