O mundo nunca foi um lugar tão limpo. No último século, a maioria dos seres humanos reconheceu a importância de hábitos de higiene, como dar um fim apropriado ao esgoto e lavar as mãos e os alimentos – basta você pensar na preocupação que tem com tudo isso aí na sua casa. Além disso, a invenção de antibióticos, vacinas e processos de esterilização, deixou os países desenvolvidos muito perto de declarar vencida a guerra contra os micro-organismos nocivos. Em 1900, pneumonia, tuberculose e diarreia eram as causas de mortes mais comuns nos Estados Unidos, tanto de adultos quanto de crianças. Cento e dezessete anos depois, o cenário mudou e atualmente o câncer e doenças cardíacas, que não estão diretamente relacionadas com micróbios, lideram as causas de óbito.
Os avanços das batalhas para exterminar esses vilões a todo custo foram inegáveis, mas as famílias agora se deparam com outro problema: a falta deles. Sim, os “micróbios benfeitores” têm o papel de sintetizar vitaminas que o organismo precisa, como a K e algumas do complexo B, transformar substâncias que não somos capazes de metabolizar em partículas absorvíveis e, ao competirem com outros micro-organismos, impedem que as espécies prejudiciais se proliferem. Por isso, não conviver com eles traz diversos malefícios, como o aumento do risco de algumas doenças crônicas. Esse é o assunto do livro Let Them Eat Dirt: Saving Your Child from an Oversanitized World(Deixe que Eles Comam Terra: Salvando seus Filhos de um Mundo Hiper-Higienizado, em tradução livre), escrito pelos microbiologistas B. Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta, pesquisadores da University of British Columbia (Canadá). “A guerra contra os micróbios é inútil. Eles estão por toda parte, inclusive dentro de nós, e em conjunto pesam mais do que todos os animais e vegetais do planeta. A boa notícia é que, das centenas de milhares de espécies conhecidas, apenas cerca de 100 comprovadamente causam doenças ao ser humano”, afirma Marie-Claire em entrevista exclusiva à CRESCER.
Segundo os pesquisadores, além de ser tarefa impossível, tentar manter as crianças em um ambiente totalmente limpo, impedindo que se sujem brincando na terra, no parquinho ou em qualquer lugar, aumenta o risco de desenvolverem doenças ligadas ao sistema imunológico. A explicação é que uma parte essencial do desenvolvimento das defesas do corpo se dá nos primeiros anos de vida. Se não há contato intenso com substâncias estimulantes (como poeira e terra) durante sua fase de treinamento, o sistema imunológico não consegue distinguir corretamente as que são inofensivas das que oferecem risco real, o que resulta em ataques exagerados, caso da asma e das alergias, por exemplo. Até a obesidade e o diabetes tipo 2 estão relacionados a uma menor variedade de micróbios no intestino dos doentes, o que dificulta a absorção de nutrientes da maneira feita por um órgão saudável.
Com base em descobertas recentes da ciência e durante a própria pesquisa, Brett e Marie-Claire apontam no livro estratégias que os pais podem usar para garantir que os filhos tenham um microbioma saudável, ou seja, um intestino povoado pelos micróbios “bons”, e, consequentemente, menos risco de sofrer com algumas dessas principais doenças da vida moderna. Confira.
OS PRIMEIROS DIAS DE VIDA
Durante o parto normal, o bebê recebe uma dose significativa de micróbios maternos ao passar pelo canal vaginal, principalmente lactobacilos, que, entre outros efeitos positivos, facilitam a digestão da proteína do leite. “No caso de cesáreas, recomendamos o ‘seeding’, que é colocar um pano na vagina antes do parto e depois passar na boca e pele do recém-nascido”, afirma Brett. “Estudos já provaram que bebês que passaram por essa técnica têm micróbios mais diversos e parecidos com os do parto natural”, diz o pesquisador.
Outro momento crucial no início da vida é a amamentação. Antigamente, os cientistas acreditavam que o leite materno era estéril, mas pesquisas recentes revelaram que não é verdade. O líquido está cheio de micróbios benéficos que impedem a proliferação dos que causam doenças. Além disso, é rico em nutrientes que permitem o desenvolvimento de um microbioma saudável e equilibrado no intestino.
À MESA
Uma alimentação saudável, com fibras e vitaminas, deve ser prioridade desde a gravidez. Os pesquisadores explicam que uma gestante com dieta rica em carboidratos, por exemplo, favorece apenas poucas espécies que se alimentam do açúcar e o transformam em energia para o organismo. Na hora do parto, a mãe transmitirá ao bebê esses micróbios especializados em fornecer calorias, o que aumenta o risco de a criança desenvolver obesidade no futuro. Portanto, comer de forma correta é algo que deve virar rotina na dieta de toda a família até mesmo depois da gravidez, com muitos grãos, frutas e verduras, já que isso incentiva a proliferação dos micróbios “bons” que ficam na parte final do intestino (também conhecido como intestino grosso). Esses alimentos passam por todo o trato digestivo e intestinal e chegam até esses micro-organismos, diferente do açúcar e outros refinados que são completamente digeridos no estômago e intestino delgado. Outra pedida são alimentos fermentados, como o iogurte natural, que tem micróbios benéficos.
Se o seu filho não gosta de nenhum item desse cardápio, os pesquisadores recomendam uma técnica: “Vale explicar que ele não está comendo apenas para si mesmo, mas também para os bichinhos amigos que vivem dentro dele. Se não comer opções saudáveis, eles acabarão morrendo. É a verdade, só que contada de uma maneira mais compreensível”, explica Marie-Claire.
AJUDA ANIMAL
Além de incentivarem os donos a se exercitar e serem ótimas companhias, os cachorros têm influência positiva nos micróbios dos humanos com quem convivem. Um artigo publicado no Journal of Allergy and Clinical Immunology (EUA) analisou 22 estudos e concluiu que ter um cão durante a gravidez ou nos primeiros meses de vida do bebê reduz o risco da criança desenvolver eczema (reação alérgica da pele) em 30% e de ter asma em 20%. “Cachorros são sujos e isso é ótimo!”, afirma Marie-Claire. “Eles são nossa conexão com a natureza, então as marcas daquelas patas encardidas no seu chão valem a pena.” Os autores defendem que lambidas estão liberadas, mesmo em bebês pequenos. A única precaução, para eles, é ter certeza de que o animal é dócil e saudável, levando-o ao veterinário com frequência, e mantendo as vacinas em dia.
ANTIBACTERIANOS
Além das mudanças sociais, os antibióticos são um dos principais responsáveis pelas alterações na população de micróbios do mundo e só devem ser usados quando necessário. “Eles matam todos os micro-organismos [bons e ruins] com que entram em contato indiscriminadamente, causando um desequilíbrio em nosso corpo”, diz Brett. Estudos recentes fazem, inclusive, uma conexão entre o uso frequente de antibióticos no primeiro ano de vida e aumento do risco de obesidade. A explicação dos pesquisadores é de que o remédio altera a flora intestinal do bebê, diminuindo sua variedade e facilitando a proliferação desenfreada dos micróbios que processam açúcar e outros alimentos altamente calóricos.
Outro risco é o surgimento das “superbactérias”. A maioria das bactérias morre ao entrar em contato com os antibióticos, mas algumas, por meio de mutações ou seleção genética, sobrevivem e se tornam imunes ao tratamento. Se esse grupo sobrevivente entrar em contato com diversos outros remédios, ele pode se tornar cada vez menos vulnerável, até chegar um momento em que nada conseguirá combatê-lo. Em setembro deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou um alerta informando que o uso indiscriminado de antibióticos tem acelerado o desenvolvimento da resistência microbial e que o assunto deve ser uma “preocupação global”.
Até os sabões antibacterianos são vilões, alertam os pesquisadores. Em setembro deste ano, a Food and Drug Administration (FDA) – Administração de Medicações e Alimentos dos Estados Unidos – baniu o uso deles no país argumentando que não há evidências suficientes de que tragam benefícios, mas há indícios de que possam ser prejudiciais a longo prazo. “O sabão e a água comum são suficientes para fazer a higienização”, afirma Marie-Claire.
BRINCANDO COM TERRA
Já reparou como seu filho parece encantado pela sujeira? Basta desviar o olhar e ele coloca a primeira coisa que vê na boca ou analisa um inseto de perto, segurando-o entre os dedinhos. Os pesquisadores acreditam que esses impulsos não ocorrem à toa. Na verdade, eles são o resultado de anos de evolução para que as crianças entrem em contato com o maior número de micróbios possível enquanto seu sistema imunológico ainda se desenvolve e aprende a lidar com eles.
Nada melhor do que incentivar as brincadeiras em que seu filho se suje, sempre com bom senso, é claro, evitando situações de risco de transmissão de doenças, como no piso de locais movimentados (metrô, shopping, aeroporto) e com fezes de animais. “Mesmo nas cidades, há sempre como estimular o contato dos pequenos com a natureza”, diz Marie-Claire. “Faça um passeio no parque e não se esqueça de levar um balde de água. As crianças vão adorar fazer bolos de lama e, no processo, entrarão em contato com micróbios benéficos.” Isso sem contar a alegria delas em meio a toda essa diversão.
NA MEDIDA
Os autores do livro, B. Brett Finlay e Marie-Claire Arrieta, alertam que o segredo para não cair em excessos é saber a diferença entre higiene e limpeza. A primeira é um conjunto de atitudes que realmente podem prevenir doenças, como lavar as mãos, e devem continuar sendo empregadas. Já a segunda é um ideal moderno da nossa sociedade que considera que uma criança com lama da cabeça aos pés está suja e deve ser lavada imediatamente, quando na verdade isso não oferece nenhum risco para a sua saúde. Os pesquisadores consideram exageradas as ações de alguns pais como: usar álcool gel antes de tocar no bebê, esterilizar mamadeiras antes de cada uso, limpar com lenços antibacterianos a chupeta se ela tiver caído no chão de casa e principalmente frases como: “Não brinque na terra, é nojento”.
Para eles, atualmente, a criança estar impecável é uma das medidas usadas pela sociedade para avaliar se os pais estão fazendo um bom trabalho, e, por isso, existe uma pressão para atingir esse ideal. “Vivemos a época do quanto mais limpo, melhor. Mas isso nem sempre é verdade quando se trata da saúde”, afirma Marie-Claire. A sugestão é fugir dos extremos e ter em mente que um pouquinho de “sujeira” não faz mal a ninguém.
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